Blog da Poesia

A poesia não lírica de João Cabral De Melo Neto

23/04/2025 09:46 - por Tiago Vargas tiagovargas.uab@gmail.com

João Cabral de Melo Neto construiu sua poética de maneira não lírica e não confessional, ligada à realidade e voltada à racionalidade. Pertenceu à geração de 45, mas, apesar de ser considerado seu maior representante, não pode ser enquadrado como exemplar estilístico desta geração, já que sua estética não propõe diretamente um retorno às formas tradicionais do verso, apesar de sua construção poética guardar ênfase na palavra e seus sentidos.

Influenciado por temas da geração de 30, mergulhou no sertão de maneira contundente, produzindo a epopeia de seu povo em Morte e Vida Severina. Sua linguagem cuidadosa, rigorosa e seca em alguns momentos dá forma a uma poesia autorreflexiva, voltada à discussão sobre a própria linguagem e todas as suas possibilidades de expressão poética. Passeia por outros temas de cunho social sem perder o cuidado formal, a racionalidade e o equilíbrio de suas composições.

Tecendo a manhã
1

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão

Fábula de um Arquiteto
A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e tecto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.
Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até fechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

A Educação pela Pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.

 

Encontrou algum erro? Informe aqui

Faça seu login para comentar!