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Intermitências poéticas de José Saramago
José de Sousa Saramago nasceu no dia 16 de novembro de 1922, em Portugal. Escritor, poeta, contista, dramaturgo, romancista, tradutor e jornalista. Considerado a maior expressão da literatura lusitana contemporânea. Em 1966 lançou “Os poemas possíveis’’, com textos que denotavam peculiares traços neorrealistas; em 1970 “Provavelmente Alegria”, ambos de poesia. Entretanto, foi com a publicação dos romances que viu-se definitivamente consagrado como escritor maduro e senhor do seu ofício.
Seus romances alinhavam-se com as premissas do realismo histórico português, fazendo uma notória e sem igual relação da ficção com a factual existência (Criando situações verossímeis numa linguagem de inestimável força lírica). O homem duplicado, Ensaio sobre a cegueira, As intermitências da morte, Memorial do Convento, Caim e o Evangelho segundo Jesus Cristo foram apenas algumas de suas publicações mais relevantes.
Minucioso e clarividente. Autor universal de escrita extraordinária e primorosa. (Suas principais características foram o inerente uso de parágrafos longos e ausência/escassez de pontuação). Cético e pessimista. Misturava pensamentos com diálogos em consideráveis fluxos de consciência. Na poesia os temas mais contumazes em suas obras foram a exaltação a liberdade, às lutas, a fraternidade e o amor. Em 1998 foi-lhe atribuído o Prêmio Nobel de Literatura. Consagração máxima para um escritor
Arranca metade do meu corpo,
do meu coração,
dos meus sonhos.
Tira um pedaço de mim,
qualquer coisa que me desfaça.
Me recria,
porque eu não suporto mais pertencer a tudo,
mas não caber em lugar algum.
José Saramago
É tão fundo o silêncio…
É tão fundo o silêncio entre as estrelas.
Nem o som da palavra se propaga,
Nem o canto das aves milagrosas.
Mas lá, entre as estrelas, onde somos
Um astro recriado, é que se ouve
O íntimo rumor que abre as rosas.
– José Saramago, em “Provavelmente alegria”. Lisboa: Editorial Caminho, 1985.
Nesta esquina do tempo é que te encontro
Nesta esquina do tempo é que te encontro,
Ó nocturna ribeira de águas vivas
Onde os lírios abertos adormecem
A mordência das horas corrosivas
Entre as margens dos braços navegando
Os olhos nas estrelas do teu peito,
Dobro a esquina do tempo que ressurge
Da corrente do corpo em que me deito
Na secreta matriz que te modela,
Um peixe de cristal solta delírios
E como um outro sol paira, brilhando,
Sobre as águas, as margens e os lírios
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.
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No silêncio dos olhos
Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?
– José Saramago, em “Os poemas possíveis”. 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.
§§
Retrato do poeta quando jovem
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brandas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
– José Saramago, em “Os poemas possíveis”. 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.
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