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Pecadores: quando o blues encontra o Inferno

17/04/2025 09:41 - por Jorge Ghiorzi jghiorzi@gmail.com

Após cinco anos moldando o universo de “Pantera Negra” - que rendeu duas obras de prestígio do cinema de super-heróis (2018 e 2022) -, Ryan Coogler liberta-se das amarras dos blockbusters para assumir as rédeas de seu projeto mais pessoal e arriscado. “Pecadores” (Sinners, 2025) rompe com a tradição das adaptações, pois trata-se de uma criação original nascida da mente do diretor, produzida por sua produtora Proximity Media. Neste terreno livre de concessões comerciais, Coogler não apenas desafia gêneros como reafirma sua maturidade artística, trocando os trajes heroicos por uma narrativa visceral que beira o confessional.

No calor opressivo do Sul norte-americano em 1932, os irmãos gêmeos Elijah e Isaiah (dupla interpretação de Michael B. Jordan) travam uma batalha dupla: contra a segregação racial e pela realização do sonho de criar um bar/clube de blues. O que começa como um drama histórico de resistência cultural transforma-se radicalmente quando criaturas noturnas - vampiros que personificam, metaforicamente, a Ku Klux Klan em sua essência mais monstruosa - declaram guerra à comunidade negra. Neste universo, o blues transcende sua função musical sendo ao mesmo tempo maldição e redenção, ponte para o inferno e arma contra seus mensageiros.

“Pecadores” é um experimento de alquimia onde o diretor funde drama de época, filme de gangsters, horror vampiresco, ação pulsante e musical - uma combinação perigosa que em tese flertaria com a tragédia. Coogler, porém, tece essas influências com a uma precisão de mestre. A longa, sinuosa e espetacular sequência da evolução da música negra (encenada no ambiente do bar) é particularmente deslumbrante: um balé cinematográfico que conecta séculos de história através de movimentos coreografados com intensidade quase religiosa. As referências - desde o blues sobrenatural de Um Drink no Inferno até o horror social dos zumbis de Romero - são assimiladas, não meramente copiadas. Até elementos visuais (postes de energia elétrica que simbolizam cruzes e revoadas de corvos como arautos do destino) servem à narrativa com naturalidade.

A primeira metade do filme constrói meticulosamente seu mundo: um drama sócio-histórico que mescla a crueza dos filmes de gangster com a autenticidade do cinema realista. Na segunda metade, quando ocorre a virada para o sobrenatural - onde os vampiros (todos brancos, todos famintos) iniciam seu cerco - é tão abrupta quanto necessária. Coogler aqui reproduz a essência do blues: a ruptura e a dissonância transformada em arte.

“Pecadores” poderia ter sido apenas mais um manifesto panfletário. Em vez disso, Coogler opta pela sofisticação. Sua crítica ao racismo estrutural é construída através de imagens e símbolos, nunca através de discursos. Os monstros não são meras metáforas, mas extensões lógicas de um mal histórico que nunca foi embora. A trilha sonora - personagem central da trama - não apenas ambienta, mas comenta a ação, criando camadas de significado que se revelam em cada revisitação.

O que Coogler entrega absolutamente não é uma reinvenção do cinema, mas um exercício muito bem-sucedido em elevar o entretenimento de gênero ao status de arte. Cada elemento - da direção, da fotografia, da trilha, da direção de arte - converge para criar uma experiência única. “Pecadores” é simultaneamente um soco no estômago e um poema visual, um filme que consegue ser intelectual sem perder seu poder de entreter. O diretor celebra a cultura negra não através da idealização, mas da confrontação honesta com seus fantasmas. A mistura de mitologia afroamericana, religiosidade e folclore resulta em um terror gótico sulista. Um alento criativo em um mar de fórmulas preguiçosas.

A experiência de “Pecadores” só se completa com a sequência pós-créditos - não um mero extra estilo Marvel, mas um epílogo que ressignifica toda a jornada e permanece na memória como o acorde final de um grande blues.

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